As Muitas Vidas
do "Suburbano"
Em um dia quente e ensolarado em uma escola no
Rio de Janeiro, a professora começa a sua aula com uma leitura de “O Cortiço”,
de Aluisio de Azevedo. A história gira em torno das vidas dos moradores de uma
casa de cômodos lotada de imigrantes portugueses, ex-escravos e mães solteiras,
que moravam apinhados em apartamentos minúsculos, ganhavam as suas vidas trabalhando como
biscateiros, fazendo toda sorte de bicos, nas imediações do bairro, ou no
Centro do Rio de Janeiro.
No livro, os dramas humanos dos moradores são
pontuados pelas constantes brigas entre estes, geralmente tendo a intercessão
da Polícia. Mas, se lermos com mais atenção, podemos perceber outras coisas.
A primeira delas é a convivência dos moradores
daquele cortiço com os moradores mais antigos do bairro de Botafogo, e ela não
era nada tranquila. Estes antigos moradores eram membro de uma camada de ricos
comerciantes e proprietários que deixaram as suas casas no Centro da cidade do
Rio de Janeiro, na época em que ela era ainda a Corte da única monarquia das
Américas.
Estes
abastados moradores foram encontrar em Botafogo a calma e a paz de viverem em
ruas arborizadas e largas, longe do barulho do comércio de vendedores
ambulantes e pretas minas vendendo doces e refrescos. Buscavam enfim, aquilo que
hoje chamamos de “qualidade de vida”.
Desde a década de 1860, cada vez mais moradores
iam buscar em Botafogo, a tal “qualidade de vida” que o centro do Rio de
Janeiro perdera desde há muito. Morando em chácaras com enormes quintais e
pomares, estes moradores orgulhavam-se de serem “suburbanos”. Moravam, diziam
eles, nos “arrabaldes” da cidade, um meio caminho entre a “roça”, onde se
localizavam os distantes campos das fazendas da Lagoa, ou da ainda mais
distante Zona Oeste. Na época, não havia nenhuma conotação pejorativa em ser
“suburbano”, muito pelo contrário. Esta denominação era carregada de um
significado muito diferente do que existe hoje.
O romance
de Aluisio de Azevedo conta a história em que o pacato bairro de Botafogo
começava sofrer os efeitos da urbanização e da industrialização.Tal como hoje,
o Centro da jovem república brasileira foi alvo de uma verdadeira cirurgia
urbana, a “Reforma Pereira Passos”. Tal como hoje também, a ideia era
“revitalizar” o centro, tirando da sua paisagem o aspecto de cidade colonial.
Mas mesmo com todas as reformas de revitalização,
o Centro do Rio de Janeiro era o local onde a maior parte da população da
capital federal vivia e trabalhava. Na época, a cidade era dividida em
circunscrições denominadas “freguesias”, diferentes da atual divisão em
“bairros”. Uma “freguesia” era uma divisão administrativa tomada de empréstimo
da organização burocrática Igreja Católica, que tinha sua sede na igreja matriz
da paróquia local.
A freguesia de Sant”Anna era a região mais densamente
povoada da cidade, e muito provavelmente do Brasil. Era uma área que
compreendia a atual Avenida Presidente Vargas, onde no início do século XX, moravam quase 100,000
pessoas, uma população maior do que muitas cidades brasileiras no século XXI. Era
uma população maior, por exemplo, do que a atual cidade de Armação dos Búzios.
Com uma densidade demográfica tão grande, ficava
muito difícil encontrar espaço para morar. Foi em busca deste espaço, que as
populações ricas desta e de outras freguesias começaram a se deslocar para os
“subúrbios” da cidade.
Mas, na medida em que as reformas que embelezavam
a cidade, tornavam também o preço do solo mais alto, fazendo com que estas
populações mais pobres também
migrassem destas áreas densamente
povoadas, para os “subúrbios” onde morava a população mais rica. Aí começaram
os problemas. A cada dia, os proprietários das enormes casa e chácaras viam
chegar mais famílias de lavadeiras, estivadores, carregadores, sabe-se lá mais
o quê, a morar nas casas de cômodos que começavam aparecer aqui, e ali no
bairro de Botafogo.
Se olharmos para um mapa da época, podemos
perceber sem muita dificuldade, que territorialmente o Rio de Janeiro era uma
cidade com um centro extremamente povoado, mas com extensas áreas praticamente
desertas. Ao Norte, estas áreas cobriam o que hoje conhecemos a Leopoldina e a
Zona Norte, e ao Sul, os bairros da Zona Sul.
O romance de Aluisio de Azevedo, mostra como
ricos e pobres passaram a conviver em uma área que antes era um “refúgio”
daqueles primeiros moradores mais ricos. Na verdade, eles não estavam nem um
pouco dispostos a negociar espaço para estes novos moradores. No entanto, em
nenhum momento, estes conflitos permitem perceber que a condição de “suburbano”
tivesse algum significado pejorativo.
Foi no momento em que a expansão da cidade ganhou
uma outra frente, com a expansão da malha ferroviária da Estrada de Ferro
Central do Brasil para a Zona Norte e Leopoldina, que o sentido do termo
“suburbano” foi alterado completamente. O carioca inventou, por assim dizer, um
sentido completamente novo para o termo, sem paralelo em outras cidades do
mundo. Aqui, no contexto do Rio de Janeiro, “suburbano” passou a ser
identificado cada vez mais com os operários pobres e incultos que antes
habitavam o cortiço descrito por Aluisio de Azevedo. “Suburbano” passou a ser
então condição de vida, e não mais apenas aquele lugar distante do centro da
cidade.
Já se falou que o subúrbio do Rio de Janeiro era
o lugar onde o Sol não brilhava, distante da sofisticação de estilo de vida das
classes médias. Se utilizássemos como escala temporal a longa duração,
poderíamos dizer que o século XX, na história da cidade do Rio de Janeiro foi o
momento em que o “suburbano” foi inventado, com todas as conotações pejorativas
e peculiaridades que o termo ainda hoje carrega.
Mas, como nada debaixo deste sol fica parado,
assistimos hoje à uma tentativa de que os significados deste termo “suburbano”
sejam mais uma vez modificados. Cada vez mais, no Rio de Janeiro assistimos a
um fenômeno muito interessante, a da construção de uma identidade positiva
deste ‘suburbano”. Este movimento é percebido em inúmeras manifestações
culturais, a valorização do samba e do Funk, a busca do resgate da história
local e também das histórias de vida das pessoas que ajudaram a fazer do
subúrbio do Rio de Janeiro o que é hoje.
O “suburbano”, esta invenção da história urbana
do Rio de Janeiro mostra que tem muitas vidas.
TEXTO : PROFESSOR ZABRISKIE POINT
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