sábado, 27 de junho de 2020

Vigario Geral , a história esquecida !

A VERDADEIRA E LONGA HISTÓRIA DE VIGÁRIO GERAL



Pra quem acha que Vigário Geral se resume ao triste episódio da chacina, senta que lá vem muita história...


Como bom suburbano, sempre fiquei intrigado com a falta de informação dessa região, seja na literatura, seja oral. Por conta disso gostaria de compartilhar essa pesquisa que tenho feito há algum tempo, com todos aqueles que valorizam a RENEGADA memória suburbana. Com a escassez de fontes no último século, foi necessário se aprofundar em literaturas bem antigas, assim como registros cartoriais centenários. Pequenos fragmentos dessa rica história, que formam um grande quebra cabeça... Vamos lá!

Totalmente esquecido pela história, o Engenho de Nossa Senhora da Graça, também chamado Engenho do Vigário Geral, se envontrava dentro dos limites da imensa Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação do Irajá, que abrangia vários bairros do subúrbio. 


Quando o Arraial de Nossa Senhora da Apresentação do Irajá foi elevado a freguesia em 1644, um tal "Gonçalo de Pontes" foi relacionado como senhor de dois dos vinte e cinco engenhos que existiam na região. Esse era Gonçalo de Pontes de Labrit, dono do Engenho de Nossa Senhora da Graça. Portanto, de acordo com essa data, o engenho foi fundado no mínimo há 387 anos, haja vista não ter acesso a sua data de fundação. Por esse motivo, já no início do século XIX esse engenho também passou a ser chamado de Engenho Velho, tamanha sua antiguidade.





O registro mais antigo que encontrei foi uma escritura de venda do primeiro ofício de notas, com data de 06/03/1662, na qual os herdeiros de Gonçalo de Pontes de Labrit vendem o engenho:

"Escritura de venda de um engenho que fazem Antonio Muniz de Menezes e sua mulher Dona Ana de Pontes, e assim mais Dona Isabel e Gonçalo, órfãos [de Gonçalo de Pontes de Labrit e de sua mulher Dona Margarida de Albuquerque] e irmãos da vendedora, ao Capitão Manoel de Barcelos Machado – de invocação NOSSA SENHORA DA GRAÇA, [sito em Irajá], com casa de vivenda, casa de purgar, ermida, olaria, com suas pertenças de terras, cobres, com sua fábrica, com seis escravos do gentio de guiné e 31 bois de roda e carro, havido de herança." (1º Ofício de Notas, disponível no Arquivo Nacional)

Desta feita, se torna propriedade do Capitão Manoel de Barcelos Machado que logo, de acordo com outros registros encontrados, passa a ser propriedade de membros da família Homem. A saber, Fernão Faleiro Homem, Francisco Machado Homem e Salvador Correia Homem.

Importante citar que nesta época, as adjacências do atual bairro de Vigário Geral eram terras realengas. Isto é, de uso público e que pertenciam a câmara do senado. Nos documentos primitivos eram chamados "campos realengos de Irajá". Não se sabe ao certo quando se tornaram propriedade da câmara do senado, pois segundo Haddock Lobo, no livro Tombos das Terras Municipais de 1886, os documentos desse período foram perdidos no incêncio da câmara em 1790, no prédio vizinho ao arco do teles. Contudo um registro que será mostrado mais a seguir, sugere que foi através de carta de sesmaria doada por Salvador Correia de Sá e Benevides que o senado da câmara passou a ser dono dos campos realengos de Irajá, só não se sabe quando. 

Já em Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro encontra-se um relato do Dr. José Vieira Fazenda de 1907, afirmando que em 1683, parte dessas terras realengas referentes ao Engenho de Nossa Senhora da Graça, foram aforadas pela câmara do senado a outro membro da família Homem, o capitão Luiz Machado Homem, pela quantia de 6$000. Não se sabe como, mas o capitão logo se torna o próprietário definitivo das terras. Talvez o capitão, que também era almotacé da câmara, obteve alguma regalia nessa questão.

Atravéz de mais registros em cartório, também disponíveis no Arquivo Nacional e na Biblioteca Nacional, consegui estabelecer a cronologia do Engenho de Nossa Senhora da Graça / Engenho do Vigário Geral.  Esses registros, somados a literaturas bem antigas, todas com mais de 100 anos, me permitiram montar o quebra cabeça em quase sua totalidade.

Digo quase, devido a não conseguir chegar a data fiel do momento em que as terras chegam as mãos da câmara do senado. Tudo indica que  foi logo após a família Labrit vender o engenho para a família Homem. Consultando livros de aforamentos da prefeitura do Rio, os campos realengos de Irajá sempre aparecem como "s/ data".  Além disso, apesar da afirmação do Dr. José Vieira Fazenda sobre o aforamento em 1683, há um registro cartorial anterior, de 06/11/1674, confirmando que as terras já eram propriedade do capitão Luiz Machado Homem nessa época:

"Escritura de dinheiro a razão de juros com hipoteca de bens que faz o Capitão Luiz Machado Homem ao Juízo dos Órfãos – O devedor hipoteca um engenho que possui, de invocação NOSSA SENHORA DA GRAÇA, sito em Meriti (Rio Meriti)." (1º Ofício de Notas, disponível no Arquivo Nacional)

Chegado 22/05/1685, o capitão Luiz Machado Homem vende a propriedade ao capitão Gaspar Azedias Machado:

"Escritura de venda [...] de um engenho que fazem o Capitão Gaspar de Azedias Machado e sua mulher Clara Barreta de Brito [...] sito em Mereti (Rio Meriti), de invocação NOSSA SENHORA DA GRAÇA [...] o qual houve por título de compra feita ao Capitão Luiz Machado Homem em 22/5/1685." (4º Ofício, disponível na Biblioteca Nacional)

Em 12/09/1712, o capitão Gaspar Azedias Machado, vende a propriedade ao capitão Manoel Freire Alemão de Cisneiros:

"Escritura de venda de um engenho que faz o Capitão Gaspar de Azedias Machado ao Capitão Manoel Freire Alemão de Cisneiros – de invocação NOSSA SENHORA DA GRAÇA, com casas de vivenda, igreja, senzalas, caldeiras e casa de purgar, sito no rio de Meriti, partindo de uma banda com o dito rio de Meriti e da outra com terras de Manoel Barbosa de Lima e de Rafael de Figueiredo, correndo o sertão até entestar com os campos de Irajá [...] realengos, cuja data de terras consta de uma carta de sesmaria passada pelo Governador Salvador Correia de Sá e Benevides, cuja data foi comprada ao Capitão Luiz Machado Homem..." (2º Ofício de Notas, disponível no Arquivo Nacional)

Note no fim desse registro, onde foi citada a sesmaria doada pelo governador Salvador Correia de Sá e Benevides. Tanto Haddock Lobo quanto outros autores antigos não conseguiram acesso aos documentos referentes a essa sesmaria, pois como falado, foram perdidos no incêndio da câmara do senado em 1790. Entende-se que o Capitão Luiz Machado Homem compra as datas de terra pertencentes a câmara do senado, que por sua vez a receberam através de sesmarias concedidas pelo governador. 

Posteriormente, o capitão Manoel Freire Alemão de Cisneiros vende a propriedade a Lourenço da Silva Borges, conforme mais um registro em cartório de 01/04/1716:

"Escritura de venda de uma fazenda que faz o Capitão Manoel Freire Alemão de Cisneiros a Lourenço da Silva Borges [...] que de uma banda partem com terras de Manoel Barbosa de Lima e da outra com o rio de Meriti, como na carta de sesmaria se declara, com tudo o que direitamente lhe pertencer de matos, terras, caminhos, entradas e saídas, a qual fazenda houve por título de compra que dela fez ao Capitão Gaspar de Azedias Machado e sua mulher por escritura feita nesta nota" (2º Ofício de Notas, disponível no Arquivo Nacional)

Nessa altura, as áreas do Engenho de Nossa Senhora da Graça iam do Rio dos Cachorros, no atual Jardim América, até o meandro do Rio Meriti, nos fundos da atual Vigário Geral. Quando o novo proprietário, Lourenço da Silva Borges, passa a comprar terras vizinhas, que ficavam entre seu engenho e o engenho do provedor da moeda Francisco Cordovil de Siqueira e Melo (atual bairro Cordovil) e as terras dos Figueiredos. Ou seja, terras nas atuais Parada de Lucas / Vista Alegre / Trevo das Margaridas, além de terras pras bandas da Pavuna, sempre fronteiriças ao seu engenho, como forma de expandir sua propriedade. Essas terras menores foram compradas de Maria Tourinha, de José Furtado de Mendonça e etc, que serão citadas mais a frente. A partir de então, os limites do Engenho de Nossa Senhora da Graça, agora vasto, vão do Porto Velho de Irajá, na foz do Rio Meriti (que ficava na região entre o atual trevo das missões e trevo da linha vermelha - tudo aterrado hoje - ver imagem em anexo) até a região próxima ao Rio Pavuna. Por isso lembro de um artigo onde o memorialista Brasil Gerson falou que esse engenho se tornou "dilatado" e "de mais complicada história", devido ao seu tamanho e aos desdobramentos das transações feitas ao longo dos séculos.

Ocorre que as áreas vizinhas incorporadas ao Engenho são reclamadas por moradores da Freguesia de Irajá, pois também eram terras realengas. Ou seja, do governo e de uso público. Nestas áreas ficava o gado vindo das regiões limítrofes ao Rio de Janeiro. 

Para que fique claro sobre os campos realengos de Irajá, em Annaes do Rio de Janeiro de 1834, Balthazar da Silva Lisboa nos diz:

"...que se augmentassem as pastagens, e que fossem despejados os que se havião senhoreado dos campos realengos de Irajá, para servirem de pastagem do gado..."

Haddock Lobo, no livro Tombos das Terras Municipais de 1886, confirma a utilidade:
"É tambem facto averiguado, que essas terras foram ao principio destinadas a uso público, e especialmente á pastagem e descanso dos gados, que de cima da serra desciam para o consumo da cidade; sendo que por esta razão tiveram, e tem ainda hoje, o nome de realengas."

A existência desses campos é bem primitiva, como cita o Dr. Felizberto Freire, em Memórias da Cidade do Rio de Janeiro de 1912:

"A pastagem do gado para o consumo dos habitantes da cidade, era feita até então nos campos de Irajá . Mas todos se convenceram de que era grande a distancia a percorrer para ser abatido nas proximidades dos açougues da cidade. A Camara tomou então a resolução de mudar a sede da pastagem para o campo da propria cidade em 1649..." 

Inicia-se então uma briga da câmara do senado com Lourenço da Silva Borges. Descobre-se que tanto Maria Tourinha, como José Furtado de Mendonça e outros proprietários locais, ao contrário do capitão Luiz Machado Homem, não eram proprietários da terra. Isto é, foram considerados invasores (já naquela época!). Desta forma a câmara do senado passa a exigir que Lourenço da Silva Borges abra mão dessas terras incorporadas ao Engenho de Nossa Senhora da Graça.

PRESTE BEM ATENÇÃO, pois agora entra em cena o tal "VÍGÁRIO GERAL"...

Ocorre que em meio a essa batalha, Lourenço da Silva Borges morre. As terras e o engenho ficam abandonadas por um breve intervalo de tempo. É A PARTIR DAQUI que começa a HISTÓRIA DO VIGÁRIO GERAL, quando seu neto, o reverendo cônego LUIZ DA SILVA BORGES E OLIVEIRA, através de seu direito de herança, se torna o novo proprietário do engenho por volta de 1740. O reverendo era homem letrado, carioca formado Doutor pela Universidade de Coimbra, desembargador e tesoureiro-mór da Sé do Rio de Janeiro e que, segundo Monsenhor Pizarro em Memórias Históricas do Rio de Janeiro, foi o VIGÁRIO GERAL do Rio de Janeiro entre 1752 e 1755. 

Segue registro cartorial de 31/03/1760, que atesta a propriedade do reverendo e seus limites com o Engenho do Cordovil:

"Escritura de venda de um engenho que fazem o Doutor Provedor Francisco Cordovil de Siqueira e Melo, cavaleiro professo na Ordem de Cristo, e sua mulher Dona Catarina Vaz Moreno, a José de Souza Andrade - de fazer açúcar, moente e corrente, da invocação de Nossa Senhora do Bonsucesso, com capela aparamentada, 53 escravos, 164 bois, vacas e novilhos, 56 ovelhas e carneiros, 1 barca, 1 saveiro e uma casa de vivenda anexa à capela, sito no porto da freguesia de Nossa Senhora da Apresentação do Irajá, partindo de uma banda com terras do engenho de Brás de Pina e da outra com terras do engenho do Reverendo Doutor e Cônego LUIZ DA SILVA BORGES E OLIVEIRA (Vigário Geral)..." (1º Ofício de Notas, disponível no Arquivo Nacional).

O livro Tombo das Terras Municipais, também confirma a localização do Engenho de Nossa Senhora da Graça já na época do reverendo Luiz da Silva Borges e Oliveira, assim como a batalha judicial:

"...as terras realengas de Irajá situadas junto de uma estrada geral, pela qual se comunicava, e ainda se communica a cidade com as Provincias centraes; e de serem além disso margeadas pelo grande rio de Merity, confirma-me na segunda opinião. Como quer que seja, o certo é que a Illustrissima Camara possue uma importante data de terras na Freguezia de Irajá cuja posse lhe tem sido reconhecida, e cujo dominio lhe tem sido acceito em uma immensidade de titulos e documentos, cujas datas se contam por dous seculos [...] Em uns autos que encontrei no Archivo existe um termo feito aos 13 de Agosto de 1741 pelo escrivão da Camara, que então era Miguel Rangel de Souza Coutinho, e assignado pelo Reverendo Dr. LUIZ DA SILVA BORGES E OLIVEIRA, proprietario do ENGENHO DE N. S. DA GRAÇA, que confinava com as terras realengas de Irajá. Consta esse termo de uma cessão e traspasse, expontaneamente feito ao senado da Camara pelo referido Dr. Silva Borges, para uso público dos moradores d’esta cidade, e de seu reconcavo, de toda a acção, direito, posse, dominio e senhorio que ele podesse ter nas ditas terras, que confinavam com o seu Engenho; que eram as mesmas que seu avô, Lourenço da Silva Borges, tinha comprado em 1716 a D. Maria Tourinha e outros, e que por esse facto se achavam incorporados ao referido Engenho [...] Com quanto n’este termo se diga que a sessão foi feita espontaneamente, todavia tal espontaneidade não existio. Tendo o Senado ido em vistoria a Irajá por causa de queixas e reclamações que a tal respeito lhe haviam sido feitas pelos moradores do lugar, reconheceo-se que taes terras faziam parte dos campos realengos, e não pertenciam ao Dr. Silva Borges, embora seu avô as tivesse comprado como allodiaes; porquanto a pessoa que as vendêo nada mais era do que um simples intruso. Então o Dr. Silva Borges entendêo, que, para se furtar a um pleito em que não podia ter ganho de causa, o recurso era praticar um acto de generosidade, abrindo mão d’aquillo de que apenas era illegitimo detentor."

Fica evidente que o reverendo abriu mão das terras, sabendo que não poderia vencer o pleito junto a câmara, mesmo seu avô Lourenço da Silva Borges tendo pago aos invasores pelas mesmas. 

Além das terras de Maria Tourinha mencionadas nessa última citação, as terras de José Furtado de Mendonça chamadas CAPÃO DO FURTADO ou SÍTIO DO QUIFANGOMBE, também foram comprados por Lourenço da Silva Borges. Comparando outros registros e suas cordenadas, tudo leva a crer que o Capão do Furtado se localizava nos arredores de Parada de Lucas / Vista Alegre / Trevo das Margaridas. Sobre essas terras, segue trecho do livro Tombos da Terras Municipais de 1866:

"...existe uma certidão [...] na qual se lê, que em 13 de Agosto de 1782 José Furtado de Mendonça assignára termo, no livro de obrigações e fianças, de reconhecer ao Senado da Camara, d’aquella época em diante, como directo senhorio das terras do seu sitio denominado – Capão do Furtado – e antigamente sitio de Quifangombe, promettendo pagar o fôro que se lhe arbitrasse. Finalmente no segundo livro de vereações do Senado da Camara a fl. 144, encontra-se o Accórdão de 6 de Julho de 1793, pelo qual se mandou aforar em hasta pública uma porção de terrenos em Irajá, que se achavam devolutos, e que constavam de 315 braças de testada pela divisa do Engenho de N. S. da Graça, indo da cerca do Capão do Furtado para as margens do rio Merity."

Sobre as terras de Maria Tourinha, levando em conta que ela era proprietária do jurássico Engenho da Pavuna, provavelmente as terras realengas vendidas ficavam entre seu engenho e o engenho do Vigário Geral. Em Primeiras Famílias do Rio de Janeiro de Carlos G. Rheingantz, cita Maria Tourinha, seu esposo João Velho Barreto e seu Engenho da Pavuna:

"Notícia do engenho da Pavuna, do Licenciado João Velho Barreto e de Dona Maria Tourinha Maciel" 
 
Esse mesmo Engenho da Pavuna em alguns documentos e mapas antigos é também chamado de Engenho de João Velho. Nessas terras surgiram depois o Engenho de Nossa Senhora do Desterro da Pavuna e depois a Fazenda de Nossa Senhora da Conceição da Pavuna. Portanto, tudo leva a crer que essas outras terras realengas incorporadas ao Engenho de Nossa Senhora da Graça / Engenho do Vigário Geral, é a localidade que vai dos fundos do atual Jardim América após o Rio dos Cachorros, passando pelo atual Rio Acari, pelo início da Pavuna (comunidade da Ficap e Beira Rio), até o atual Parque Colúmbia, fazendo limite com a atual Acari (chamada de Areal no passado). Ou seja, fazendo fronteira com a terras do Engenho da Pavuna e com outras terras realengas onde depois surgiu o Engenho de Botafogo. Infelizmente muitos engenhos ou engenhocas da região não aparecem em mapas antigos, ao contrário do Engenho de Nossa Senhora da Graça / Engenho do Vigário Geral, que aparece em alguns mapas as margens do Rio Meriti, como no mapa da capitania do Rio de Janeiro de 1767 (ver imagem em anexo), porém sem nome, somente abreviado como "Ingº".

A localizaçâo deste outro engenho de Maria Tourinha, chamado de Santo Antônio e nas margens do Rio Meriti, fica evidente nessa outra escritura de de 26/04/1722:

"Escritura de ratificação de dote que faz Maria Tourinho Maciel [...] a João de Andrade Veiga, para se casar com sua filha Maria Tourinho Maciel – Ratifica o dote de [...] mil cruzados, entrando aí a legítima paterna, a saber, as terras do engenho velho, começando do rio da Pabuna por um córrego acima, onde [...] figueira grande da parte de cima do outeiro de Santo Antonio e dali [...] o alto que lhe chamam Amatohy (?), irá buscando uma grota onde [...] o rio (ilegível), e irá por ele abaixo até o rio Meriti [...] para a parte do porto, com todas as suas vertentes, entradas e saídas livres, com o partido de cana que na dita terra está, com 180 carros de cana, que tudo lhe dá em preço de 4.000 cruzados e mais os escravos seguintes que vão com seus preços [...]"

Ou seja, do Rio Pavuna até o antigo leito do Rio Meriti (localização aproximada do atual Rio Acari), só nos resta a região já mencionada, que vai dos arredores da atual Av. Coronel Phidias Tavora, que é a comunidade da Ficap e Beira Rio, na Pavuna, até o Parque Colúmbia. Neste local ficava aproximadamente a confluência dos Rios Pavuna e Meriti, localidade que nos séculos passados se chamava Três Barras, que era um dos pontos limites da Freguesia de Irajá com a Freguesia de São João Baptista do Merity (anterior São João Baptista de Trairaponga). 

Já a localização exata da casa SEDE do Engenho de Nossa Senhora da Graça / Engenho do Vigário Geral original, que friza-se também chamado de Engenho Velho devido a sua antiguidade, era exatamento onde hoje está a COMUNIDADE DE VIGÁRIO GERAL, na altura da Estação de Vigário Geral, pela parte de dentro dos muros da linha férrea, que no final do século XIX ao ser inaugurada era chamada de Parada do "VELHO ENGENHO", não em vão. A casa sede ficava bem nas margens do Rio Meriti (ver imagem em anexo).

Confusas seriam essas informações se não recordar que o Rio Meriti ORIGINAL (sinuoso), nada tem a ver com o o Rio Meriti atual (retificado em linha reta), pois houveram diversas obras de saneamento que ao longos dos anos mudaram o curso original do mesmo. Conforme imagem em anexo, o curso baixo do Rio Meriti passava por trás das atuais Comunidades de Vigário Geral e Parada de Lucas e desaguava próximo ao atual trevo da linha vermelha na atual Rod. Washington Luiz. O Porto de Irajá, que nos mapas de meados do século XIX já era chamado de Porto VELHO de Irajá (Irajá, pois essa região de Cordovil também pertecia a Freguesia de Irajá), devido também a sua antiguidade, ficava entre esse mesmo trevo da linha vermelha e o trevo das missões, no início da atual Rod. Washington Luiz. Na imagem em anexo, percebe-se que restou uma porção de águas, que dividem as duas comunidades com a área militar e que era justamente o trecho final do Rio Meriti. 

Por isso também há referências do Engenho de Nossa Senhora da Graça como "Engenho do Porto de Irajá". Justifica-se, pois por um lado do Rio Irajá eram as terras do engenho do reverendo, onde ficava o porto, do outro lado o engenho dos Cordovil e o engenho dos Figueiredo (Rafael de Figueiredo, herdeiro de Margarida Pinta).

Após a morte do cônego Luiz da Silva Borges e Oliveira, seu sobrinho, o juiz da alfandega Antônio Martins de Brito, que era seu testamenteiro, pediu autorização ao Rei Dom José, para poder comprar por um valor mais em conta o engenho, incluído no inventário, para poder saldar dívidas de seu tio. É neste requerimento que o engenho é citado como "Engenho do Porto de Irajá". No relatório do Marques do Lavradio de 1778, também aparece um tal "porto do juiz da alfândega", se tratando do sobrinho e herdeiro do Vigário Geral. 

Dessa forma, Antonio Martins de Brito se torna proprietário do Engenho de Nossa Senhora da Graça / Engenho do Vigário Geral e assim como Lourenço da Silva Borges e o reverendo Luiz da Silva Borges e Oliveira, também compra algumas terras vizinhas, conforme mais escrituras que não serão citadas para não aloangar ainda mais o texto. Concluindo que o "dilatado" Engenho de Nossa Senhora da Graça, conforme apelidou Brasil Gérson, chegou a ter terras que iam desde o Porto Velho de Irajá, nos arredores do atual trevo das missões, até a região fronteiriça a Pavuna. 

Após Antonio Martins de Brito, a propriedade passou pelas mãos de seus herdeiros e outros donos no início do século XIX. Sobre esse período, até então não encontrei muitas informações, senão sobre uma briga judicial entre os herdeiros Antonio Martins de Brito com os herdeiros de José Furtado de Mendonça, cujo o sobrinho do reverendo saiu vitorioso, após provar que seu tio havia pago pelas terras. Curioso é que no final das contas era sobre aquelas terras realengas citadas anteriormente e que a câmara do senado, real proprietária, não havia sido comunicada do novo processo. Estavam lutando pela propriedade da invasão, que foi novamente retomada pela câmara do senado. O processo foi em vão. Esse fato foi relatado ainda em Tombos da Terras Municipais, de 1866:

"Em 1800 os proprietarios do Engenho de N. S. da Graça, que foram herdeiros de seu pai Antonio Martins de Brito, que tambem o fôra do Dr. Luiz da Silva Borges e Oliveira, tencionavam incorporar ao seu Engenho este sitio, em virtude de uma sentença que obtiveram contra um dos successores de José Furtado de Mendonça; e isto sem que o Senado fosse sabedor, ou tivesse sido chamado á autoria."

Após esse período, em meados do século XIX a terra chega aos mãos de Pedro de Mello Alcanforado, outro vigário. Sobre ele, encontrei uma preciosa carta onde oferece a propriedade ao governo imperial (original anexo nas imagens). Curioso e muito interessante! 

Apesar de um pouco ilegível e de difícil compreensão, consegui transcrever uma boa parte. Assim diz o documento disponível no Arquivo Nacional (erros de português por conta do autor - desconsiderar possíveis erros de interpretação meus):

"Ilmo Exmo Senhor

A fasenda de N. Senª da Graça, vulgarmente conhecida pela do Vigario Geral, acha-se situada as margens dos rios Pavuna e Mirity, na Freguesia de Iraja, que a banhão e dividem pelo lado do norte, e fica distante algumas braças da nossa Bahia. He huma sesmaria de meia legua de frente e huma de fundo, e tem mais duas atrações anexas, [como tudo?] comta das [ilegível] em nosso poder. 
      As terras são fartas e a cinco annos ha que nao sao trabalhadas. Tem diversas collinas todas e toda fazenda cobertas de excellentes matas para as construções necessarias, e que querendo se cortar para lenhas, darao muitas centenas de [carvão?] tem excelentes pastagens e grandes vallas para os rios por onde entrao os barcos, que exportao os productos pª a Corte, e isso n'uma viagem de duas horas e meia, alem de ficar ao curto espaço d'uma legua da Estação de Cascadura da Estrada de Ferro de D. P 2º.
      Não me sendo possível, atento a falta de braços e ao meu estado [ilegível] inteiramente a agricultura. (possuil-a?), offereco-a em venda ao Governo Imperial, podendo-se m' a pagar a vista, a prasos, ou como o Governo melhor intender: certo de não haver particular que possa e queira dispor fundos com terras e convencido de que o Governo não poderá incontrar junto a Corte huma fasenda com tantas vantagens, que deva de dia em dia augmentos de valor.
Corte, 25 de Nov de 1861

Vigario Pedro de Mello Alcanforado"

Percebe-se, pelas medidas e descrição, que nessa época de 1861, as terras do Engenho Nossa Senhora da Graça / Engenho do Vigário Geral estavam novamente reduzidas ao que era em seus primórdios, que são os atuais bairros de Vigário Geral e parte do Jardim América. As colinas citadas na carta são os chamados "tobogãs" pelos atuais locais. Após um século da morte do reverendo Luis da Silva Borges e Oliveira, das terras incorporadas, todas foram vendidas e as ditas realengas já haviam sido retomadas pela câmara do senado, que após muitos anos foram aforadas em hasta pública por se echarem devolutas, sendo ocupada por novos donos. 

Logo depois, em 1874, chega a Estrada de Ferro Leopoldina e surge a Parada do "Velho Engenho" (atual Estação de Vigário Geral). As terras são divididas pelo leito ferroviário. Décadas depois veio, paralela a este leito, a Variante Rio Petrópolis, que hoje é o trecho da rua Itabira continuado pela Av. Bulhões Marcial. Não confundir essa Variante com a Nova Variante, que em meados do século XX era o nome da atual Av. Brasil, construída sobre inúmeros aterros sobre a orla praiana de todo o subúrbio.


Não encontrei registros do que ocorreu com a propriedade do Vigário Pedro de Mello Alcanforado e até quando ficou em suas mãos. Sabe-se no entanto, que no início do século XX, o Doutor Bulhões Marcial (que deu nome a avenida) adquire as terras da fazenda, as loteia e aí inicia-se a história mais recente do Bairro de Vigário Geral. Poucas décadas depois vem os conjuntos habitacionais e a história já conhecida por muitos, a qual não irei abordar nesta pesquisa.

Vale aqui lembrar que a ESTRADA DO VIGÁRIO GERAL é um caminho bem antigo, que já aparecia em mapas antigos (ver imagem em anexo). Era o caminho que o Vigário Geral percorria a cavalo até a sede da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação do Irajá, na igreja matriz, ao lado do atual cemitério. Antes da construção da Avenida Brasil, a Estrada do Vigário Geral original não havia sido "cortada" ainda. Portanto, o trecho final da Estrada do Vigário Geral, após ser dividida, recebeu o nome de Av. Hanibal Porto, hoje em Irajá.

Como não é de hoje que a memória do subúrbio é renegada, infelizmente não restou nem uma poeira da casa sede do Engenho de Nossa Senhora da Graça / Engenho do Vigário Geral. Tudo foi perdido!

Essa é a longa e riquíssima história de Vigário Geral... 

AINDA DIZEM QUE O SUBÚRBIO NÃO TEM HISTÓRIA!!!

(Se você leu até aqui, você é um amante da memória suburbana! Muito obrigado!)

________________________________

*Texto e pesquisa de minha autoria: Hugo Delphim, concluída em Junho de 2020.
*Todas as fontes de pesquisa e informações se encontram citadas no próprio texto.

3 comentários:

  1. Já tinha lido alguma coisa a respeito do bairro que eu moro, mas não com essa precisão, com fartos documentos. Gostei muito de ler e saber mais um pouco da história do meu bairro. Pena que não restou nada do engenho. Mais valeu pela leitura.

    ResponderExcluir
  2. Boa tarde
    Que material incrível.
    Sempre quis conhecer a história do bairro onde moro desde que me conheço por gente rs, mas como nos relatos descrito acima é muito difícil. Parabéns pela iniciativa e trabalho constituído.

    ResponderExcluir
  3. Olá! Gostaria de acrescentar uma informação. Em setembro de 1856 (5 anos antes da carta do Vigario Pedro de Mello Alcanforado que você transcreveu), foi publicado no Jornal do Comércio um anuncio de venda com o seguinte conteúdo:
    "Vende-se a fazenda denominada do -- Vigário Geral, -- sita na freguezia de Irajá, cuja fazenda principia logo acima da barra do rio de S. João de Merity, confronta pela frente e lado com o mesmo rio, que é todo navegável, e pelo lado esquerdo com as terras do Sr. Sebastião Cordovil de Siqueira e Mello [obs: teria sido o atual bairro de Cordovil também uma fazenda?], pelos fundos confronta com as terras dos Srs. Custodio Xavier de Barros e José Gregorio; contém olarias, casa de engenho de fazer aguardente, casa de morada, e outras diversas casas, 13 escravos, 40 e tantas cabeças de gado, alguns animaes muares, carneiros, barco de conduzir lenha e todos os mais generos com todos os utensilios da fazenda. Esta fazenda offerece as maiores vantagens pela proximidade em que está da cidade, existe mais da metade coberta de matos dos quaes se póde fazer lenha, que em menos de dous annos com 25 trabalhadores se póde tirar o importe da fazenda livre das despezas; tem excellentes terras para cultura de canna e mandioca, e muitas proporções para diversas olarias; vende-se pagando-se á vista ou fiada, dando-se boas garantias; quem a pretender, póde informar-se com o Sr. Francisco de Sousa Dias, morador do Rio de Janeiro, na rua da Conceição n. 83, ou com o Sr. Luiz Manoel Bastos, morador em Muruhy de s. Christovão, podendo mesmo com estes ditos senhores tratar da compra ou com Francisco José Soares na villa Iguassú."
    Observação: Eu pesquiso a vida desse Francisco José Soares há algum tempo. Ele foi o famoso e riquíssimo Comendador Soares, dono da fazenda do Morro Agudo (atual bairro Comendador Soares, no município de Nova Iguaçu / Villa Iguassu). Pela fortuna que ele possuía, fica subentendido pelo anúncio que a tal fazenda do Vigário Geral pertencia a ele em 1856, data do anúncio.

    ResponderExcluir