domingo, 5 de julho de 2020

Uma ilha no Bairro de Irajá : Saravatá !

UMA ILHA EM IRAJÁ - A histórica e aprazível Ilha de Saravatá  

Aparece nos mapas mais primitivos como Ilha de GRAVATÁ ou GARAVATÁ, que passou a ser chamada de ILHA DE SARAVATÁ do século XVIII até o fim do XX, quando então foi extinta através de inúmeros ATERROS na região. Todos esses nomes derivam do tupi "karawá tã", que significa "planta que fura", em português "carauatá", nome de uma bromeliácea, cujo fruto se assemelha a um abacaxi sem coroa.


Localizava-se na localidade entre o atual Trevo das Missões (início da Rodovia Washington Luiz) no seu lado direito e a Linha Vermelha. Precisamente onde hoje ficam as empresas Cargo Park e Arm Rio Petrobrás. No passado, ficava em frente a antiga foz do Rio Meriti, onde ficava o Porto Velho de Irajá e a Pedra do Lagarto. Na época a região pertencia a Freguesia de N. S da Apresentação do Irajá, por isso Irajá. Hoje é divisa do bairro de Cordovil com o município de Duque de Caxias.

Importante citar que nos primórdios da colonização, era chamada de ILHA DAS OSTRAS, devido a quantidade desse molusco na região. Um dos proprietários dessa ilha no final século XVII, foi o capitão Luiz Machado Homem, também dono do Engenho de Nossa Senhora da Graça (atual Vigário Geral) por volta de 1670, como cita um artigo do memorialista Brasil Gerson em 1969:



"...Luiz Homem [...] autor de muitos e frequentes protestos as autoridades contra os intrusos que a infestavam em sua faixa marítima, na sua Ilha das Ostras, em busca de matéria prima para cal que fabricavam com prejuízo para ele, dono dela, na foz do Rio que dizia ser do Irajá, e que, entretanto, era do Meriti."

Na Revista do Instituto Histórico de 1881 também foi chamada de ILHA DO CAMARÃO:

"Saravatá - Ilha comprida entre a foz do rio Merity e a Ilha do Governador; é bastante arborisada e são afamadas as suas frutas. Alguns dão-lho o nome de ilha do Camarão, por ter sido por muitos annos propriedade do Francisco Pereira Camarão, fallecido ultimamente, e que tinha ahi uma grande caieira."

Note que o trecho cita que na ilha havia uma caieira, isto é, um forno onde se calcinava as conchas e ostras para fabrical cal, estando de acordo com as informações anteriores.

Em Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro de 1903, o Dr. José Vieira Fazenda também cita a denominação antiga:

"Em todos esses papéis fala-se em lugares que perderam a antiga denominação, tais como ILHA DAS OSTRAS, na boca do rio Miriti, rio dos Cachorros, Miriti Doce e Miriti Salgado, Ponta Grossa, etc."


Esses papéis por ele citado, ser referem a um processo de 1782, sobre a invasão de terras vizinhas a ilha, que eram realengas. Ou seja, de uso público, pertencentes ao senado da câmara. O texto contesta que a defesa de Thereza Angélica de Jesus, como forma de enganar, utilizava-se de antigas denominações de localidades que já haviam se tornado desconhecidas até naquela época. 

Nesta mesma publicação, em Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro, diz também sobre a ilha: "...Saravatá, célebre por suas frutas do conde".

Segue registros de escrituras de venda que mostram que após Luiz Machado Homem, a ilha logo passou pelas mãos de outros proprietários:

"Escritura de venda de uma ilha que fazem o Doutor Inácio Cardoso de Azevedo e sua mulher Branca Maria Coutinha a Francisco de Sá Souto Maior - Ilha de Sareguatá (Saravatá), sita defronte do porto de Irajá, com suas benfeitorias e um saveiro, herdada de seus pais e sogros Agostinho de Paredes e sua mulher Ana de Azevedo Coutinho, sem foro nem pensão alguma." (03/04/1709 - 1º Ofício de Notas - Disponível no Arquivo Nacional)

Ou: "Escritura de venda de uma ilha que faz José Barbosa de Sá a José Fagundes Amaral - ilha de Saravatá, com casas de vivenda, sita defronte da barra de Irajá, havida por folha de partilha dos bens de sua mãe." (28/03/1722 - 1º Ofício de Notas - disponível no Arquivo Nacional)



Nesta época eram raras as propriedades que permaneciam nas mãos da mesma família. Tanto as ilhas, como engenhos e etc, eram constantemente negociadas, quando não perdiam através de hipotecas ou como fiadores. Outra prova desta rotatividade, é que nas visitas pastorais de Monsenhor Pizarro, ao fim do século XVIII, a ilha é relatada como propriedade de Inácia Maria, sendo citada na relação dos oratórios da região:  "...de Inácia Maria, na Ilha chamada Sarauatá, vizinha, ao porto Velho, em distância de 1. 1/2 legoa, com pouca diferença para o mesmo rumo..."
 
Chegado o final do século XIX, a ilha que nesta altura era propriedade da Marinha, foi arrendada a Abreu Mayrink Veiga, onde a firma Mayrink Veiga & Cia estabelece um depósito de pólvora. Em 1915 ocorre uma grande explosão! A firma havia comprado do Ministério da Guerra um carregamento de 30 toneladas de pólvora, que explodiram, eliminando qualquer vestígio do depósito, destruindo as casas da ilha, arremeçando árvores, trilhos e vagões para longe e deixando uma cratera de 10 metros de profundidade. A família do vigia que habitava a ilha foi resgatada por um intendente de polícia que viu a explosão da Ponta do Galeão (Ilha do Governador) e veio de canoa. Como era noite, houve um clarão que segundo relatos, foi visto até em Niterói. O estampido foi ouvido da Gávea e os tremores sentidos de Madureira. Alguns lugares da Ilha do Governador, como Flexeira, Itacolomy, Tubiacanga e Galeão sentiram o impacto da explosão em algumas construções, com vidraças quebradas. 



Nas décadas seguintes, o neto de Abreu, Sr. Antenor Mayrink Veiga, já proprietário da ilha, constrói uma casa de veraneio na mesma. Tamanha a beleza da ilha, dos seus arredores e da construção, a casa chegou a receber ilustres da época como Fernando Delamare, Walter Moreira Salles, o embaixador português Walter Prytman, o prefeito de Nova York Robert Wagner, entre outros. Além disso, a propriedade era cedida constantemente para pic-nics e confraternizações de clubes da época, como o Clube Olympico (da Cinelândia), City Bank Club, Cube Ginástico Português, onde desembarcavam os sócios vindos de barco desde a Praça Mauá. Há também relatos de passeios a barco na região, realizados esporadicamente pela Companhia Cantareira, que passava por várias ilhas suburbanas hoje extintas, até chegar a localidade. Além de ter sediado um churrasco oferecido pelo Aero Club do Brasil (que ficava em Manguinhos) ao General Eurico Gaspar Dutra, até então Ministro da Guerra, posterior presidente do Brasil. 

Com essse relatos, imagine a beleza desta ilha suburbana! A região era rica em robalos, tainhas, paratys, merótes e vermelhos, além de siris e ostras, que maravilha!

Em seguida foi instalada alí a Rádio Mayrink Veiga, onde em 1948, foi recepcionado em passeio e almoço, os membros do Racing Club de Buenos Aires, participantes de uma partida amistosa contra o Fluminense nas Laranjeiras. Tamanho aconhego de tais instalações e beleza natural da região, a Ilha de Saravatá foi até escolhida como concentração da seleção brasileira para a Copa de 1950, fato dado como certo até os dias anteriores ao torneio. Em uma última visita do técnico Flávio Costa e dirigentes da CBD, verificou-se que apesar de ótimas instalações, a ilha sofria com a falta de abastecimento d'água, havendo então uma mudança de planos.

Veja que era uma ilha carregada de história!

Não obstante, também carregada de lendas, como a do tesouro escondido. Rezava que piratas fugidos da marinha britanica, esconderam um tesouro nos porões de um convento jesuíta que havia na localidade. Curioso que essa lenda também foi muito atribuída a uma ilha vizinha, a Ilha do Raimundo. Contudo, a partir de uma reportagem do Diário da Noite na década de 50, um funcionário da família Mayrink Veiga afirmava que foi desse tesouro que iniciou-se a fortuna da família. Balela! A lenda ainda se fortaleceu devido a uma contrução antiga aos fundos da ilha, localizada atrás de uma colina, onde segundo os reporteres havia um túnel com 500 metros de comprimento que a ligava ao continente. A reportagem também narrava outra lenda, de que a ilha era mal assombrada e amaldiçoada. O funcionário da família relatava aparições de fantasmas e também dizia que nesse túnel foram aprisionados muitos escravos chegados na região. Fatos curiosos, mas não passam de lendas e não coadunam com os registros apresentados até aqui, pois há registros de que a ilha já havia tido diversos donos desde o período colonial, até chegar as mãos da Marinha, sendo impossível um tesouro permanecer até a época que a mesma aforou ao Sr. Abreu Mayrinck Veiga. 



O formato da ilha era comprida e, como já dito, ficava em frente ao Porto Velho de Irajá, na foz do Rio Meriti. Mas fazia fundos com a Ponta do Franco, depois chamada de Ponta da Mãe Maria e Flexeira, na Ilha do Governador. Na ilha havia uma colina, na qual havia um marco de pedra trabalhada, com cabeça em formato de prisma quadrangular, protegido por uma cobertura piramidal revestida de madeira. Se tratava do marco geodésico do Serviço Geográfico Militar.

Pra finalizar, segue um impactante relato do naturalista Magalhães Correa em 1936, que nos trás a idéia de quão pitoresca era a paisagem local:

"...a esquerda colossaes árvores, duas marajubeiras [...] ao norte do campo, seis tamarineiras [...] atravessamos uma plantação de fruteiras, as quais deram outrora, a fama a ilha pela selecção das deliciosas frutas [...] a mata cerrada; parecia que atravessavamos uma floresta [...] nesse trajecto foram notadas as seguintes árvores: pao dálho ou guararemas, mangueiras, jaboticabeiras, goiabeiras, araçazeiras, pitangueiras, jaqueiras, cajueiros; perto da habitação, mamoeiros, cafeeiros, bananeiras. Em plena matta, imauba, cambuhy, camboatá, massambará, bico de pato ou sete cascas, jacaré, algodão da praia; entre as palmeiras, o côco de cotia, esguio, de belo porte; o da bahia, baba de boi e de catharro; nas estipes dos coqueiros sumarés, orchidaceas. As árvores como em gala, ostentavam festões de baba de velho [...] por todos os lados encontramos a marajubeira [...] Isoladas, piteiras e sobre as velhas arvores veluzziaceas [...] gambá, que há muito, assim como lagartos, principalmente os tiejus, entre as aves paludicas a piaçoca, saracura, garças, socó e marrequinhas; da matta, as pombas, jurity, parary, rolinha e jacus [...] e inumeros passaros canoros e gritadores [...] espirais de borboletas, vermelhas, amarellas, rajadas de preto e amarello, eurema, blathea, pieris phyrro e danais, erippus, um verdadeiro encanto. Essa ilha é digna do paraíso, pela poesia e encantos [...] concurso da própria natureza e torna-se-á privilegiada pela sua posição geographica e belleza tropical, vivenda sonhada nos contos das fadas [...] compõem uma bella tela, só faltando o artísta para reproduzi-la. Tudo nela é bello, agradavel e romantico." 

Essa era a aprazível Ilha de Saravatá, numa época onde a Baía de Guanabara era o verdadeiro paraíso, que tanto apaixonou viajantes estrangeiros que por aqui passaram! 

A ilha foi extinta pelos inúmeros aterros em nossa Baía de Guanabara, que agoniza como um depósito de lixo e esgoto.

Esse é mais um fragmento da história perdida do subúrbio carioca!

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*Texto e pesquisa de minha autoria, Hugo Delphim.
*As fontes de pesquisa foram citadas no próprio texto. *Algumas imagens retiradas de periódicos antigos.

4 comentários:

  1. Belíssimo resgaste de parte da memória do nosso Rio de Janeiro. Parabéns pela pesquisa.

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  2. Irei divulgar e compartilhar no meu blog. Meus parabéns pela excelente postagem! Nossos bairros precisam desse resgate.

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  3. Saudações.

    Alguém já encontrou alguma foto dessa ilha? Na Copa de '50 ainda estava lá.

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  4. Muito legal sua pesquisa da memória do bairro de Irajá não podemos perde a memória dos antepassados mas que o homem acabará com o progresso.

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